CONTRA A INTERPRETAÇÃO -Susan Sontag (1964)
O conteúdo é um vislumbre, um
encontro como um lampejo, É muito pequenino – um conteúdo muito pequenino, WILLEN
DE KOONING, numa entrevista
Somente as pessoas
superficiais não julgam pelas aparên-cias, O mistério do mundo está no visível,
não no invisível, OSCAR WILDE, numa carta
No início, a arte foi provavelmente experimentada como
encantamento, magia: a arte era um instrumento de ritual (ver, por exemplo, as
pinturas rupestres de Lascaux, AItamira, Niaux, La Pasiega, etc.). A primeira
teoria da arte, a dos filósofos gregos, propunha a arte como mimese, imitação
da realidade.
Foi neste momento que se colocou a questão peculiar do valor
da arte, pois a teoria mimética, por seus próprios termos, desafia a arte a
justificar a si mesma.
Platão, que propôs a teoria, parece tê-lo feito com o
objetivo de determinar que o valor da arte é dúbio. Como ele considerava as
coisas materiais comuns objetos miméticos, imitações de formas ou estruturas
transcendentes, o retrato mais perfeito de uma cama seria apenas uma
"imitação de uma imitação". Para Platão, a arte não é particularmente
útil (o retrato de uma cama não serve para se dormir nele), nem, no sentido
estrito, verdadeira. E os argumentos usados por Aristóteles em defesa da arte não
contestam em realidade a idéia de Platão de que toda a arte é um elabora-do trompe
l’oeil, e, portanto, uma mentira. Mas ele questiona a idéia da inutilidade
da arte de Platão. Mentira ou não, a arte possui um certo valor, segundo
Aristóteles, por constituir uma forma de terapia. A arte é útil, apesar de
tudo, rebate Aristóteles, do ponto de vista medicinal, por despertar e purgar
as emoções perigosas.
Em Platão e Aristóteles, a teoria mimética da arte é
paralela ao pressuposto de que a arte é sempre figurativa. No entanto, os
defensores, da teoria mimética não devem fechar os olhos à arte decorativa e
abstrata. É uma falácia dizer que a arte "realista" pode ser
modificada ou desprezada, sem jamais tocar nos problemas delimitados pela
teoria da imitação.
O fato é que, no mundo ocidental, a consciência e a reflexão
sobre arte permanece-ram dentro dos limites fixados pela teoria grega da arte
como mimese ou represen-tação. É em função dessa teoria que a arte enquanto tal
– acima e além de determi-nadas obras de arte – se torna problemática e deve
ser defendida. E é a defesa da arte que gera a estranha concepção segundo a
qual algo que aprendemos a chamar “forma”, é absolutamente distinto de algo que
aprendemos a chamar “conteúdo”, e a tendência bem-intencionada que torna o
conteúdo essencial e a forma acessória.
Mesmo nos tempos modernos, quando a maioria dos artistas e
críticos já abandonou a teoria da arte como representação de uma realidade
exterior em favor da teoria da arte como expressão subjetiva, o elemento
principal da teoria mimética persiste. Quer nossa concepção de obra de arte
utilize o modelo do retrato, da representação (a arte como um retrato da
realidade), quer o modelo de uma afirmação (arte como a afirmação do artista),
o conteúdo ainda vem em primeiro lugar. O conteúdo pode ter mudado. Agora pode
ser menos figurativo, menos lucidamente realista. Mas ainda pressupomos que a
obra de arte é seu conteúdo. Ou, como se diz hoje, que uma obra de arte,
por definição, diz alguma coisa. (“O que X está dizendo é...”; “O que X
está tentando dizer é...”, “O que X disse é...” etc.)
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Nenhum de nós poderá jamais recuperar a inocência anterior a
toda teoria, quando a arte não precisava de justificativa, quando ninguém
perguntava o que uma obra de arte dizia porque sabia (ou pensava que
sabia) o que ela realizava. A partir desse momento até o fim da
consciência estamos comprometidos com a tarefa de compre-ender a arte. Podemos
apenas constatar um ou outro elemento de defesa. Na reali-dade, temos a obrigação
de derrubar qualquer elemento de defesa e de justificativa da arte que se tome
particularmente embotado ou opressivo ou insensível para com as necessidades e
a prática contemporâneas.
É o que ocorre hoje com a própria idéia de conteúdo. O que
quer que representasse, no passado, a idéia de conteúdo é hoje principalmente
um incômodo, um inconveni-ente, um convencionalismo sutil ou nem tão sutil.
Embora a corrente evolução de muitas artes pareça nos
distanciar da idéia de que uma obra de arte é fundamentalmente seu conteúdo,
essa idéia continua exercendo uma extraordinária hegemonia. Quero sugerir que
isso se dá porque a idéia se per-petua agora sob o aspecto de uma certa maneira
de encarar a obra de arte profun-damente arraigada na maioria das pessoas que
encaram com seriedade qualquer uma das artes. O que implica a excessiva ênfase
na idéia do conteúdo é o eterno projeto da interpretação, nunca
consumado. E, vice-versa, é o hábito de abordar a obra de arte para interpretá-la
que reforça a ilusão de que algo chamado conteúdo de uma obra de arte
realmente existe.
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Evidentemente, não me refiro à interpretação no sentido mais
amplo, o sentido no qual Nietzsche (corretamente) diz: “Não existem fatos,
apenas interpretações”. Por interpretação entendo nesse caso um ato consciente
da mente que elucida um de-terminado código, certas “normas” de interpretação.
Em relação à arte, interpretar significa destacar um
conjunto de elementos (X, Y, Z, e assim por diante) de toda a obra. A tarefa da
interpretação é praticamente uma tarefa de tradução. O intérprete diz: “Olhe,
você não percebe que X em realidade é – ou significa em realidade – – A? Que Y
é B? que Z é de fato C?”
Que situação poderia inspirar este curioso projeto de
transformação de um texto? A história nos fornece os elementos de uma resposta.
A interpretação aparece primei-ramente na cultura da antiguidade clássica mais
recente, quando o poder e a credi-bilidade do mito haviam sido quebrados pela
visão “realista” do mundo, introduzida pelo conhecimento científico. Aí se
colocar a questão que obceca a consciência pós-mística – a similitude dos
símbolos religiosos –, os textos antigos já não podem mais ser aceitos em sua
forma original. Passou-se então a invocar a interpretação para conciliar os
textos antigos às “modernas” exigências. Assim, os estoicos, em con-formidade
com sua idéia de que os deuses tinham de ser morais, interpretaram co-mo
alegorias as rudes aventuras de Zeus e de seu agitado clã na épica de Homero. O
que realmente se pretendeu mostrar com o adultério de Zeus com Leto,
explica-ram, foi a união do poder e da sabedoria. Dentro do mesmo espírito,
Filon de Ale-xandria interpretou as narrativas históricas literais da Bíblia
hebraica como paradig-
mas espirituais. A história do êxodo do Egito, a perambulação
pelo deserto durante quarenta anos e a chegada à terra prometida, dizia Filon,
representavam em reali-dade uma alegoria da emancipação, das atribulações e da
libertação final da alma humana. A interpretação, portanto, pressupõe uma
discrepância entre o claro signifi-cado do texto e as exigências dos leitores
(posteriores). Ela tenta solucionar essa discrepância. O que ocorre é que, por
alguma razão, um texto se tornou inaceitável, entretanto não pode ser
desprezado. A interpretação é uma estratégia radical para a conservação de um
texto antigo, considerado demasiado precioso para ser repudia-do, mediante sua
recomposição. O intérprete, sem na realidade apagar ou reescre-ver o texto,
acaba alterando-o. Porém ele não admite isso. Ele afirma que pretende apenas
torná-lo inteligível, revelando seu verdadeiro sentido. Ainda que dessa
ma-neira o texto fique profundamente alterado (outro exemplo notório são as
interpreta-ções “espirituais” rabínica e cristã do Cântico dos Cânticos,
claramente erótico), os intérpretes afirmam revelar um sentido que já se
encontra lá.
Entretanto, nos nossos dias a interpretação é ainda mais
complexa. Pois o zelo con-temporâneo pejo projeto da interpretação é
frequentemente inspirado não pela pie-dade para com o texto problemático (que
pode ocultar uma agressão), mas por uma agressividade aberta, um claro desprezo
pelas aparências. O antigo estilo de inter-pretação era insistente, porém
respeitoso; criava outro significado em cima do literal. O estilo moderno de
interpretação escava e, à medida que escava, destrói; cava “debaixo” do texto,
para encontrar um subtexto que seja verdadeiro. As mais cele-bradas e
influentes doutrinas modernas, as de Marx e Freud, em realidade são ela-borados
sistemas de hermenêutica, agressivas e ímpias teorias da interpretação. Todos
os fenômenos que podem ser observados são classificados, segundo as pró-prias
palavras de Freud, como conteúdo manifesto. Este conteúdo manifesto deve
ser investigado e posto de lado a fim de se descobrir debaixo dele sentido
verdadei-ro – o conteúdo latente. Para Marx, acontecimentos sociais como
revoluções e guer-ras; para Freud, os fatos da vida de cada indivíduo (como os
sintomas neuróticos e os lapsos de linguagem), bem como textos (um sonho ou uma
obra de arte) – todos são tratados como motivos de interpretação. Segundo Marx
e Freud, estes aconte-cimentos parecem inteligíveis. Na realidade, nada
significam sem uma interpretação. Compreender é interpretar. E
interpretar é reafirmar o fenômeno, de fato, descobrir um equivalente adequado.
Portanto, a interpretação não é (como supõem muitos) um
valor absoluto, um ato do espírito situado em algum reino intemporal das
capacidades. A interpretação também precisa ser avaliada no âmbito de uma visão
histórica da consciência humana. Em alguns contextos culturais, a interpretação
é um ato que libera. É uma forma de rever, de transpor valores, de fugir do
passado morto. Em outros contextos culturais, é rea-cionária, impertinente,
covarde, asfixiante.
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O projeto de interpretação do nosso tempo é, em grande
parte, reacionário, asfixian-te. Como os gases expelidos pelo automóvel e pela
indústria pesada que empestam a atmosfera das cidades, a efusão das
interpretações da arte hoje envenenam nos-sa sensibilidade. Numa cultura cujo
dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto em detrimento da energia e da
capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte.
Mais do que isso. É a vingança do intelecto sobre o mundo.
Interpretar é empobre-cer, esvaziar o mundo – para erguer, edificar um mundo
fantasmagórico de “signifi-cados”. É transformar o mundo nesse mundo (Esse
mundo! Como se houvesse al-gum outro.)
O mundo, nosso mundo, já está suficientemente exaurido,
empobrecido. Chega de imitações, até que voltemos a experimentar de maneira
mais imediata aquele que temos.
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Na maioria dos casos atuais, a interpretação não passa de
uma grosseira recusa a deixar a obra de arte em paz. A arte verdadeira tem a
capacidade de nos deixar ner-vosos. Quando reduzimos a obra de arte ao seu
conteúdo e depois interpretamos isto, domamos a obra de arte. A interpretação
torna a obra de arte maleável, dócil.
Este convencionalismo da interpretação é mais evidente na
literatura do que em qualquer outra arte. Há décadas os críticos literários
entendem como sua tarefa es-pecífica a tradução dos elementos do poema, peça,
romance ou conto em alguma outra coisa. Às vezes, um escritor se sente tão
pouco à vontade diante do poder ori-ginal de sua arte, que introduz na própria
obra – embora com um pouco de timidez, um toque do bom gosto da ironia – sua
clara e explícita interpretação. Thomas Mann é um exemplo desse tipo de autor
excessivamente cooperativo. No caso de autores mais obstinados, o crítico fica
tremendamente feliz em realizar esta tarefa.
A obra de Kafka, por exemplo, tem sido submetida a uma
violação em massa por nada menos de três legiões de intérpretes. Os que lêem
Kafka como uma alegoria social vêem em sua obra estudos de situações sobre a
frustração e a loucura da moderna burocracia, resultando em definitivo no
Estado totalitário. Os que lêem Kaf-ka como uma alegoria psicanalítica,
enxergam desesperadas revelações do medo do pai, suas ansiedades de castração,
a sensação de sua própria impotência, a es-cravidão aos seus sonhos. Os que
lêem Kafka como uma alegoria religiosa explicam que em O Castelo Kafka
tenta chegar ao céu, que Joseph Kafka, em O Processo, está sendo julgado
pela inexorável e misteriosa justiça de Deus... Outra obra que atraiu os intérpretes
como sanguessugas é a de Samuel Beckett. Os delicados dra-mas de Beckett sobre
a consciência recolhida – reduzida ao essencial, suspensa, frequentemente
representada pela imobilidade física – são lidos como uma afirma-ção da
alienação do homem moderno em relação ao significado, ou como alegoria da
psicopatologia.
Proust, Joyce, Faulkner, Rilke, Lawrence, Gide... poderíamos
continuar citando um autor após o outro; é interminável a lista daqueles em
torno dos quais se formaram espessas incrustações de interpretação. Mas é
preciso notar que a interpretação não é simplesmente a homenagem que a
mediocridade oferece ao gênio. Na reali-dade, é a forma moderna de compreender
algo, e aplica-se a obras de qualquer ca-tegoria. Assim, nas notas que Elia
Kazan publicou sobre sua produção de A Street-car Named Desire (Um
bonde chamado desejo), fica claro que, para dirigir a peça, foi preciso que
ele descobrisse que Stanley Kowalski representava a barbárie sen-sual e
vingativa que traga nossa cultura, enquanto Blanche Du Bois era a civilização
ocidental, a poesia, roupas delicadas, luz pálida, sentimentos. O rigoroso
melodrama psicológico de Tennessee Williams agora se tornava inteligível:
falava de algo, da decadência da civilização ocidental. Aparentemente, para que
continuasse sendo
apenas uma peça sobre um sujeito bonito porém abrutalhado,
chamado Stanley Ko-walski e uma desbotada e esquálida beldade de nome Blanche
Du Bois, seria im-possível dirigi-la.
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Não importa se o artista pretende, ou não, que sua obra seja
interpretada. Talvez Tennessee Williams ache que Um Bonde Chamado Desejo é uma
história que fala daquilo que Kazan acha. Pode ser que Cocteau em Le Sang d’
Un Poète (Sangue de um poeta) e em Orpheus (Orfeu)
exigisse as elaboradas leituras que foram feitas desses filmes, em termos de
simbolismo freudiano e de crítica social. Mas o mérito destas obras está com
certeza em outro aspecto, que não em seu "significado". Na realidade,
é justamente porque as peças de Williams e os filmes de Cocteau suge-rem todos
estes significados, que são falhos, falsos, artificiais, não conseguem
con-vencer.
De algumas entrevistas, infere-se que Resnais e
Robbe-Grillet quiseram delibera-damente que L'Année Dernière à Marienbad (O
ano passado em Marienbad) permi-tisse uma multiplicidade de interpretações
igualmente plausíveis. Mas é preciso re-sistir à tentação de interpretar Marienbad.
O que importa no filme é o caráter imedia-to, puro, intraduzível e sensual
de algumas de suas imagens, e suas soluções rigo-rosas, embora acanhadas, em
relação a certos problemas da forma cinematográfica.
Em O Silêncio, lngmar Bergman pode ter usado o tanque
rodando ruidosamente pe-la rua vazia no meio da noite como um símbolo fálico.
Mas, se fez isso, foi um pen-samento ridículo. (“Jamais acredite no escritor,
acredite na história”, dizia Lawrence.) Tomada como um objeto vulgar, um
equivalente sensorial imediato dos misteriosos fatos que ocorriam no interior
do hotel, essa sequência do tanque é o momento mais impressionante do filme. Os
que procuram uma interpretação freudiana do tanque expressam apenas sua
incapacidade de responder àquilo que está efetivamente na tela.
Uma interpretação deste gênero sempre indica uma
insatisfação (consciente ou in-consciente) com a obra, um desejo de substituí-Ia
por alguma outra coisa.
A interpretação, baseada na teoria extremamente duvidosa de
que uma obra de arte é composta de elementos de conteúdo constitui uma violação
da arte. Torna a arte um artigo de uso, a ser encaixado num esquema mental de
categorias.
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A interpretação, evidentemente, nem sempre predomina. Na
realidade, grande parte da arte do nosso tempo pode ser compreendida como algo
motivado por uma fuga da interpretação. Para evitar a interpretação, a arte
pode se tornar uma paródia. Ou pode se tornar abstrata. Ou (meramente)
decorativa. Ou pode se tornar não-arte.
A fuga da interpretação parece em particular uma
característica da pintura moderna. A pintura abstrata é a tentativa de não ter
nenhum conteúdo no sentido comum; co-mo não existe nenhum conteúdo, não pode
haver nenhuma interpretação. A Arte
Pop obtém, por meios opostos, o mesmo resultado; utilizando
um conteúdo tão es-palhafatoso, tão “é isso aí”, ela também se torna impossível
de ser interpretada.
Grande parte da poesia moderna também, a começar pelas
grandes experiências da poesia francesa (incluindo o movimento chamado
erroneamente de simbolismo), que introduz o silêncio nos poemas e reafirma a
mágica da palavra, escapou da garra brutal da interpretação. A mais recente
revolução do gosto contemporâneo na poe-sia – a revolução que depôs Eliot e
elegeu Pound – representa o abandono do con-teúdo da poesia no velho sentido,
uma impaciência com aquilo que tornou a poesia moderna vítima do zelo dos
intérpretes.
Falo principalmente da situação nos Estados Unidos, é claro.
A interpretação, no caso, é generalizada nas artes que possuem uma vanguarda
fraca e negligenciável: a ficção e o teatro. A maioria dos romancistas e
dramaturgos americanos na realida-de é composta de jornalistas ou sociólogos e
psicólogos que fazem isso por amado-rismo. Eles escrevem o equivalente
literário da música comercial. E é tão rudimentar, sem inspiração e estagnado o
sentido daquilo que poderia ser feito com a forma na ficção e no teatro,
que mesmo quando o conteúdo não é simplesmente informação, notícia, ainda é
peculiarmente visível, mais facilmente manejável, mais ostensivo. Na medida em
que os romances e as peças (nos Estados Unidos), ao contrário da poe-sia, da
pintura e da música, não refletem nenhuma preocupação interessante para com as
modificações da forma, estas artes permanecem sujeitas ao ataque da
inter-pretação.
Mas o vanguardismo programático – que na maior parte tem
significado experiências com a forma em detrimento do conteúdo – não é a única
defesa contra a praga da interpretação na arte. Pelo menos, espero que não.
Pois isso significaria obrigar a arte a estar perpetuamente em fuga. (Também
perpetua a própria distinção entre a forma e conteúdo que é, em última análise,
uma ilusão.) Teoricamente, é possível evitar os intérpretes de outra maneira,
realizando obras de arte cuja aparência seja tão unificada e limpa, cujo
impulso seja tão rápido, cujo discurso seja tão direto que a abra possa ser...
exatamente o que é. Isso seria possível agora? Acontece no ci-nema, acredito. É
por isso que o cinema é a mais viva, a mais excitante, a mais im-portante de
todas as formas de arte nesse momento. Talvez a maneira de se perce-ber quão
viva é uma determinada forma de arte seja pela liberdade que ela concede de se
errar, e não obstante continuar boa. Por exemplo, alguns filmes de Bergman –
embora atulhados de mensagens capengas sobre o espírito moderno, convidando
dessa maneira à interpretação – ainda triunfam sobre as intenções pretensiosas
do seu diretor. Em Winter Light e O Silêncio, a beleza e a
sofisticação visual das ima-gens subvertem diante dos nossos olhos a imatura
pseudo-intelectualidade da histó-ria e em parte do diálogo. (O exemplo mais
notável deste tipo de discrepância é a obra de D. W. Griffith.) Nos filmes
bons, há sempre uma comunicação direta que nos isenta de Hollywood, como os de
Cukor, Walsh, Hawks e um número incontável de outros diretores, possuem essa
qualidade libertadora anti-simbólica, assim como as melhores obras dos novos
diretores europeus, como Tirez sur le Pianiste (Atirem no pianista)
e Jules et Jim, de Truffaut, A bout de souffle (Acossado)
e Vivre sa vie de Godard, L’Aventura (A aventura) de
Antonioni, e I Fidanzati (Os noivos) de Olmi.
Se os filmes não foram atropelados pelos interpretadores,
isso se deve ao fato de o cinema ser uma forma nova de arte. E também ao feliz
acidente de os filmes terem sido considerados apenas filmes por muito tempo; em
outras palavras, ao fato de serem compreendidos como parte da cultura de massa,
em oposição à cultura erudi-ta, e terem sido deixados em paz pela maioria das
pessoas que têm cabeça. Além disso, no cinema há sempre algo mais para captar
do que conteúdo, para aqueles que gostam de analisar. Pois o cinema, ao
contrário do romance, possui um vocabu-
lário de formas – a tecnologia explícita, complexa e
discutível dos movimentos de câmera, da montagem e da composição do quadro que
faz parte da feitura de um filme.
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Que tipo de crítica, de comentário sobre arte, é desejável
hoje? De fato, não estou dizendo que as obras de arte são inexprimíveis, que
não podem ser descritas ou interpretadas.
Podem sê-lo. A questão é como. Como teria de ser uma crítica
adequada à obra de arte, e que não usurpasse seu lugar?
É necessária, antes de tudo, uma maior atenção à forma na
arte. Como a ênfase excessiva no conteúdo provoca a arrogância da
interpretação, descrições mais ex-tensas e mais completas da forma se
calariam. O que é necessário é um vocabulário – descritivo e não prescritivo –
para as formas.* A melhor crítica, e não é frequente, promove a dissolução das
considerações sobre o conteúdo em considerações sobre a forma. Posso citar,
sobre o cinema, o teatro e a pintura respectivamente, o ensaio de Erwin
Panofsky, Style and medium in the motion pictures, o ensaio de Northrop
Frye, A conspectus of dramatic genres e o ensaio de Pierre Francastel, Racine,
e seus dois ensaios sobre Robbe-Grillet são exemplos de análise formal aplicada
à obra de um único autor. (Os melhores ensaios de Mímesis, de Erich
Auerbach, como A cicatriz de Odisseu, são também desse tipo.) Um exemplo
de análise formal apli-cada simultaneamente ao gênero e ao autor, encontraremos
no ensaio de Walter Benjamin, The story teller: reflections on the works of
Nicolai Leskov.
* Uma das dificuldades está em que nossa idéia da forma é
espacial (todas as metáforas gregas da forma derivam de noções espaciais). É
por isso que dispomos de um vocabulário das formas mais elaborado para as artes
espaciais do que para as artes temporais. Entre as artes temporais, uma exceção
natural é o teatro, talvez porque o teatro seja uma forma narrativa (ou seja,
temporal) que se projeta visual e pictoricamente em um cenário... Nos falta,
sem dúvida, ainda, uma poética da no-vela, uma noção clara das formas de
narração. Talvez a crítica cinematográfica proporcione esse surgimento e sirva
como ponta de lança, porque o cinema é primordialmente uma forma visual, sem
deixar de ser uma subdivisão da literatura.
Igualmente válidas seriam as críticas que proporcionaram uma
descrição verdadei-ramente certeira, aguda, amorosa do surgimento de uma obra
de arte. Isso parece ser mais difícil quando se inclui a análise formal. Parte
da crítica cinematográfica de Manny Farber, o ensaio de Dorothy Van Ghent The
Dickens worlds: a view from Todgers e o ensaio de Randall Jarrell sobre
Walt Whitman se encontram entre os raros exemplos do que quero dizer. São
ensaios que revelam a superfície sensorial da arte sem enlameá-la
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Hoje em dia, o valor mais alto e libertador na arte – e na
crítica – é a transparência. A transparência supõe a experiência da
luminosidade do objeto em si, das coisas tal como são. Nisto reside a grandeza,
por exemplo, dos filmes de Bresson e de Ozu, e de A regra do jogo, de
Renoir.
Em outros tempos (em Dante, por exemplo) deve ter sido um
ato criador e revolucio-nário conceber as obras de arte de maneira que
permitissem sua experiência em níveis diferentes. Agora não. Seria reforçar o
princípio da redundância, que é a prin-cipal angústia da vida moderna.
Em outros tempos (tempos em que a grande arte não abundava),
deve ter sido um ato criador e revolucionário interpretar as obras de arte.
Agora não. Decididamente, o que hoje em dia não precisamos é relacionar a Arte
ao Pensamento ou (o que é pior) a Arte à Cultura.
A interpretação falseia a experiência da obra de arte,
tomando-a como ponto de par-tida. Entretanto, hoje esse falso caminho não se
justifica. Imagine a imensa multipli-cação de obras de arte ao nosso alcance,
agregada aos gostos e cheiros e visões contraditórias do perímetro urbano que
bombardeiam nossos sentidos. A nossa cul-tura é baseada no excesso, na
superprodução; o resultado é o permanente declínio da sutileza da nossa
experiência sensorial. Todas as condições da vida moderna – sua abundância
material, sua colcha de retalhos – se conjugam para embotar nos-sas faculdades
sensoriais. E a missão do crítico deve basear-se precisamente na luz do
condicionamento de nossos sentidos, de nossas capacidades (mais do que os
sentidos de outras épocas).
O que agora importa é recuperar nossos sentidos. Devemos
aprender a ver mais, a ouvir, a sentir mais.
Nossa missão não consiste em perceber em uma obra de arte a
maior quantidade possível de conteúdo, e menos ainda em espremer da obra de
arte um conteúdo maior que o já existente. Nossa missão consiste em reduzir o
conteúdo de modo a podermos ver o objeto detalhadamente.
Hoje, a finalidade de todo comentário sobre a arte deveria
fazer com que as obras de arte – e, por analogia, nossa experiência pessoal –
sejam mais, e não menos, reais. A função da crítica deveria consistir em
mostrar como é o que é, inclusive que é o que é, e não em mostrar
o que significa.
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No lugar de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da
arte.
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