SUSAN SONTAG - CONTRA A INTERPRETAÇÃO

CONTRA A INTERPRETAÇÃO  -Susan Sontag (1964)
O conteúdo é um vislumbre, um encontro como um lampejo, É muito pequenino – um conteúdo muito pequenino, WILLEN DE KOONING, numa entrevista
Somente as pessoas superficiais não julgam pelas aparên-cias, O mistério do mundo está no visível, não no invisível, OSCAR WILDE, numa carta
No início, a arte foi provavelmente experimentada como encantamento, magia: a arte era um instrumento de ritual (ver, por exemplo, as pinturas rupestres de Lascaux, AItamira, Niaux, La Pasiega, etc.). A primeira teoria da arte, a dos filósofos gregos, propunha a arte como mimese, imitação da realidade.
Foi neste momento que se colocou a questão peculiar do valor da arte, pois a teoria mimética, por seus próprios termos, desafia a arte a justificar a si mesma.
Platão, que propôs a teoria, parece tê-lo feito com o objetivo de determinar que o valor da arte é dúbio. Como ele considerava as coisas materiais comuns objetos miméticos, imitações de formas ou estruturas transcendentes, o retrato mais perfeito de uma cama seria apenas uma "imitação de uma imitação". Para Platão, a arte não é particularmente útil (o retrato de uma cama não serve para se dormir nele), nem, no sentido estrito, verdadeira. E os argumentos usados por Aristóteles em defesa da arte não contestam em realidade a idéia de Platão de que toda a arte é um elabora-do trompe l’oeil, e, portanto, uma mentira. Mas ele questiona a idéia da inutilidade da arte de Platão. Mentira ou não, a arte possui um certo valor, segundo Aristóteles, por constituir uma forma de terapia. A arte é útil, apesar de tudo, rebate Aristóteles, do ponto de vista medicinal, por despertar e purgar as emoções perigosas.
Em Platão e Aristóteles, a teoria mimética da arte é paralela ao pressuposto de que a arte é sempre figurativa. No entanto, os defensores, da teoria mimética não devem fechar os olhos à arte decorativa e abstrata. É uma falácia dizer que a arte "realista" pode ser modificada ou desprezada, sem jamais tocar nos problemas delimitados pela teoria da imitação.
O fato é que, no mundo ocidental, a consciência e a reflexão sobre arte permanece-ram dentro dos limites fixados pela teoria grega da arte como mimese ou represen-tação. É em função dessa teoria que a arte enquanto tal – acima e além de determi-nadas obras de arte – se torna problemática e deve ser defendida. E é a defesa da arte que gera a estranha concepção segundo a qual algo que aprendemos a chamar “forma”, é absolutamente distinto de algo que aprendemos a chamar “conteúdo”, e a tendência bem-intencionada que torna o conteúdo essencial e a forma acessória.
Mesmo nos tempos modernos, quando a maioria dos artistas e críticos já abandonou a teoria da arte como representação de uma realidade exterior em favor da teoria da arte como expressão subjetiva, o elemento principal da teoria mimética persiste. Quer nossa concepção de obra de arte utilize o modelo do retrato, da representação (a arte como um retrato da realidade), quer o modelo de uma afirmação (arte como a afirmação do artista), o conteúdo ainda vem em primeiro lugar. O conteúdo pode ter mudado. Agora pode ser menos figurativo, menos lucidamente realista. Mas ainda pressupomos que a obra de arte é seu conteúdo. Ou, como se diz hoje, que uma obra de arte, por definição, diz alguma coisa. (“O que X está dizendo é...”; “O que X está tentando dizer é...”, “O que X disse é...” etc.)
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Nenhum de nós poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria, quando a arte não precisava de justificativa, quando ninguém perguntava o que uma obra de arte dizia porque sabia (ou pensava que sabia) o que ela realizava. A partir desse momento até o fim da consciência estamos comprometidos com a tarefa de compre-ender a arte. Podemos apenas constatar um ou outro elemento de defesa. Na reali-dade, temos a obrigação de derrubar qualquer elemento de defesa e de justificativa da arte que se tome particularmente embotado ou opressivo ou insensível para com as necessidades e a prática contemporâneas.
É o que ocorre hoje com a própria idéia de conteúdo. O que quer que representasse, no passado, a idéia de conteúdo é hoje principalmente um incômodo, um inconveni-ente, um convencionalismo sutil ou nem tão sutil.
Embora a corrente evolução de muitas artes pareça nos distanciar da idéia de que uma obra de arte é fundamentalmente seu conteúdo, essa idéia continua exercendo uma extraordinária hegemonia. Quero sugerir que isso se dá porque a idéia se per-petua agora sob o aspecto de uma certa maneira de encarar a obra de arte profun-damente arraigada na maioria das pessoas que encaram com seriedade qualquer uma das artes. O que implica a excessiva ênfase na idéia do conteúdo é o eterno projeto da interpretação, nunca consumado. E, vice-versa, é o hábito de abordar a obra de arte para interpretá-la que reforça a ilusão de que algo chamado conteúdo de uma obra de arte realmente existe.
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Evidentemente, não me refiro à interpretação no sentido mais amplo, o sentido no qual Nietzsche (corretamente) diz: “Não existem fatos, apenas interpretações”. Por interpretação entendo nesse caso um ato consciente da mente que elucida um de-terminado código, certas “normas” de interpretação.
Em relação à arte, interpretar significa destacar um conjunto de elementos (X, Y, Z, e assim por diante) de toda a obra. A tarefa da interpretação é praticamente uma tarefa de tradução. O intérprete diz: “Olhe, você não percebe que X em realidade é – ou significa em realidade – – A? Que Y é B? que Z é de fato C?”
Que situação poderia inspirar este curioso projeto de transformação de um texto? A história nos fornece os elementos de uma resposta. A interpretação aparece primei-ramente na cultura da antiguidade clássica mais recente, quando o poder e a credi-bilidade do mito haviam sido quebrados pela visão “realista” do mundo, introduzida pelo conhecimento científico. Aí se colocar a questão que obceca a consciência pós-mística – a similitude dos símbolos religiosos –, os textos antigos já não podem mais ser aceitos em sua forma original. Passou-se então a invocar a interpretação para conciliar os textos antigos às “modernas” exigências. Assim, os estoicos, em con-formidade com sua idéia de que os deuses tinham de ser morais, interpretaram co-mo alegorias as rudes aventuras de Zeus e de seu agitado clã na épica de Homero. O que realmente se pretendeu mostrar com o adultério de Zeus com Leto, explica-ram, foi a união do poder e da sabedoria. Dentro do mesmo espírito, Filon de Ale-xandria interpretou as narrativas históricas literais da Bíblia hebraica como paradig-
mas espirituais. A história do êxodo do Egito, a perambulação pelo deserto durante quarenta anos e a chegada à terra prometida, dizia Filon, representavam em reali-dade uma alegoria da emancipação, das atribulações e da libertação final da alma humana. A interpretação, portanto, pressupõe uma discrepância entre o claro signifi-cado do texto e as exigências dos leitores (posteriores). Ela tenta solucionar essa discrepância. O que ocorre é que, por alguma razão, um texto se tornou inaceitável, entretanto não pode ser desprezado. A interpretação é uma estratégia radical para a conservação de um texto antigo, considerado demasiado precioso para ser repudia-do, mediante sua recomposição. O intérprete, sem na realidade apagar ou reescre-ver o texto, acaba alterando-o. Porém ele não admite isso. Ele afirma que pretende apenas torná-lo inteligível, revelando seu verdadeiro sentido. Ainda que dessa ma-neira o texto fique profundamente alterado (outro exemplo notório são as interpreta-ções “espirituais” rabínica e cristã do Cântico dos Cânticos, claramente erótico), os intérpretes afirmam revelar um sentido que já se encontra lá.
Entretanto, nos nossos dias a interpretação é ainda mais complexa. Pois o zelo con-temporâneo pejo projeto da interpretação é frequentemente inspirado não pela pie-dade para com o texto problemático (que pode ocultar uma agressão), mas por uma agressividade aberta, um claro desprezo pelas aparências. O antigo estilo de inter-pretação era insistente, porém respeitoso; criava outro significado em cima do literal. O estilo moderno de interpretação escava e, à medida que escava, destrói; cava “debaixo” do texto, para encontrar um subtexto que seja verdadeiro. As mais cele-bradas e influentes doutrinas modernas, as de Marx e Freud, em realidade são ela-borados sistemas de hermenêutica, agressivas e ímpias teorias da interpretação. Todos os fenômenos que podem ser observados são classificados, segundo as pró-prias palavras de Freud, como conteúdo manifesto. Este conteúdo manifesto deve ser investigado e posto de lado a fim de se descobrir debaixo dele sentido verdadei-ro – o conteúdo latente. Para Marx, acontecimentos sociais como revoluções e guer-ras; para Freud, os fatos da vida de cada indivíduo (como os sintomas neuróticos e os lapsos de linguagem), bem como textos (um sonho ou uma obra de arte) – todos são tratados como motivos de interpretação. Segundo Marx e Freud, estes aconte-cimentos parecem inteligíveis. Na realidade, nada significam sem uma interpretação. Compreender é interpretar. E interpretar é reafirmar o fenômeno, de fato, descobrir um equivalente adequado.
Portanto, a interpretação não é (como supõem muitos) um valor absoluto, um ato do espírito situado em algum reino intemporal das capacidades. A interpretação também precisa ser avaliada no âmbito de uma visão histórica da consciência humana. Em alguns contextos culturais, a interpretação é um ato que libera. É uma forma de rever, de transpor valores, de fugir do passado morto. Em outros contextos culturais, é rea-cionária, impertinente, covarde, asfixiante.
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O projeto de interpretação do nosso tempo é, em grande parte, reacionário, asfixian-te. Como os gases expelidos pelo automóvel e pela indústria pesada que empestam a atmosfera das cidades, a efusão das interpretações da arte hoje envenenam nos-sa sensibilidade. Numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte.
Mais do que isso. É a vingança do intelecto sobre o mundo. Interpretar é empobre-cer, esvaziar o mundo – para erguer, edificar um mundo fantasmagórico de “signifi-cados”. É transformar o mundo nesse mundo (Esse mundo! Como se houvesse al-gum outro.)
O mundo, nosso mundo, já está suficientemente exaurido, empobrecido. Chega de imitações, até que voltemos a experimentar de maneira mais imediata aquele que temos.
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Na maioria dos casos atuais, a interpretação não passa de uma grosseira recusa a deixar a obra de arte em paz. A arte verdadeira tem a capacidade de nos deixar ner-vosos. Quando reduzimos a obra de arte ao seu conteúdo e depois interpretamos isto, domamos a obra de arte. A interpretação torna a obra de arte maleável, dócil.
Este convencionalismo da interpretação é mais evidente na literatura do que em qualquer outra arte. Há décadas os críticos literários entendem como sua tarefa es-pecífica a tradução dos elementos do poema, peça, romance ou conto em alguma outra coisa. Às vezes, um escritor se sente tão pouco à vontade diante do poder ori-ginal de sua arte, que introduz na própria obra – embora com um pouco de timidez, um toque do bom gosto da ironia – sua clara e explícita interpretação. Thomas Mann é um exemplo desse tipo de autor excessivamente cooperativo. No caso de autores mais obstinados, o crítico fica tremendamente feliz em realizar esta tarefa.
A obra de Kafka, por exemplo, tem sido submetida a uma violação em massa por nada menos de três legiões de intérpretes. Os que lêem Kafka como uma alegoria social vêem em sua obra estudos de situações sobre a frustração e a loucura da moderna burocracia, resultando em definitivo no Estado totalitário. Os que lêem Kaf-ka como uma alegoria psicanalítica, enxergam desesperadas revelações do medo do pai, suas ansiedades de castração, a sensação de sua própria impotência, a es-cravidão aos seus sonhos. Os que lêem Kafka como uma alegoria religiosa explicam que em O Castelo Kafka tenta chegar ao céu, que Joseph Kafka, em O Processo, está sendo julgado pela inexorável e misteriosa justiça de Deus... Outra obra que atraiu os intérpretes como sanguessugas é a de Samuel Beckett. Os delicados dra-mas de Beckett sobre a consciência recolhida – reduzida ao essencial, suspensa, frequentemente representada pela imobilidade física – são lidos como uma afirma-ção da alienação do homem moderno em relação ao significado, ou como alegoria da psicopatologia.
Proust, Joyce, Faulkner, Rilke, Lawrence, Gide... poderíamos continuar citando um autor após o outro; é interminável a lista daqueles em torno dos quais se formaram espessas incrustações de interpretação. Mas é preciso notar que a interpretação não é simplesmente a homenagem que a mediocridade oferece ao gênio. Na reali-dade, é a forma moderna de compreender algo, e aplica-se a obras de qualquer ca-tegoria. Assim, nas notas que Elia Kazan publicou sobre sua produção de A Street-car Named Desire (Um bonde chamado desejo), fica claro que, para dirigir a peça, foi preciso que ele descobrisse que Stanley Kowalski representava a barbárie sen-sual e vingativa que traga nossa cultura, enquanto Blanche Du Bois era a civilização ocidental, a poesia, roupas delicadas, luz pálida, sentimentos. O rigoroso melodrama psicológico de Tennessee Williams agora se tornava inteligível: falava de algo, da decadência da civilização ocidental. Aparentemente, para que continuasse sendo
apenas uma peça sobre um sujeito bonito porém abrutalhado, chamado Stanley Ko-walski e uma desbotada e esquálida beldade de nome Blanche Du Bois, seria im-possível dirigi-la.
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Não importa se o artista pretende, ou não, que sua obra seja interpretada. Talvez Tennessee Williams ache que Um Bonde Chamado Desejo é uma história que fala daquilo que Kazan acha. Pode ser que Cocteau em Le Sang d’ Un Poète (Sangue de um poeta) e em Orpheus (Orfeu) exigisse as elaboradas leituras que foram feitas desses filmes, em termos de simbolismo freudiano e de crítica social. Mas o mérito destas obras está com certeza em outro aspecto, que não em seu "significado". Na realidade, é justamente porque as peças de Williams e os filmes de Cocteau suge-rem todos estes significados, que são falhos, falsos, artificiais, não conseguem con-vencer.
De algumas entrevistas, infere-se que Resnais e Robbe-Grillet quiseram delibera-damente que L'Année Dernière à Marienbad (O ano passado em Marienbad) permi-tisse uma multiplicidade de interpretações igualmente plausíveis. Mas é preciso re-sistir à tentação de interpretar Marienbad. O que importa no filme é o caráter imedia-to, puro, intraduzível e sensual de algumas de suas imagens, e suas soluções rigo-rosas, embora acanhadas, em relação a certos problemas da forma cinematográfica.
Em O Silêncio, lngmar Bergman pode ter usado o tanque rodando ruidosamente pe-la rua vazia no meio da noite como um símbolo fálico. Mas, se fez isso, foi um pen-samento ridículo. (“Jamais acredite no escritor, acredite na história”, dizia Lawrence.) Tomada como um objeto vulgar, um equivalente sensorial imediato dos misteriosos fatos que ocorriam no interior do hotel, essa sequência do tanque é o momento mais impressionante do filme. Os que procuram uma interpretação freudiana do tanque expressam apenas sua incapacidade de responder àquilo que está efetivamente na tela.
Uma interpretação deste gênero sempre indica uma insatisfação (consciente ou in-consciente) com a obra, um desejo de substituí-Ia por alguma outra coisa.
A interpretação, baseada na teoria extremamente duvidosa de que uma obra de arte é composta de elementos de conteúdo constitui uma violação da arte. Torna a arte um artigo de uso, a ser encaixado num esquema mental de categorias.
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A interpretação, evidentemente, nem sempre predomina. Na realidade, grande parte da arte do nosso tempo pode ser compreendida como algo motivado por uma fuga da interpretação. Para evitar a interpretação, a arte pode se tornar uma paródia. Ou pode se tornar abstrata. Ou (meramente) decorativa. Ou pode se tornar não-arte.
A fuga da interpretação parece em particular uma característica da pintura moderna. A pintura abstrata é a tentativa de não ter nenhum conteúdo no sentido comum; co-mo não existe nenhum conteúdo, não pode haver nenhuma interpretação. A Arte
Pop obtém, por meios opostos, o mesmo resultado; utilizando um conteúdo tão es-palhafatoso, tão “é isso aí”, ela também se torna impossível de ser interpretada.
Grande parte da poesia moderna também, a começar pelas grandes experiências da poesia francesa (incluindo o movimento chamado erroneamente de simbolismo), que introduz o silêncio nos poemas e reafirma a mágica da palavra, escapou da garra brutal da interpretação. A mais recente revolução do gosto contemporâneo na poe-sia – a revolução que depôs Eliot e elegeu Pound – representa o abandono do con-teúdo da poesia no velho sentido, uma impaciência com aquilo que tornou a poesia moderna vítima do zelo dos intérpretes.
Falo principalmente da situação nos Estados Unidos, é claro. A interpretação, no caso, é generalizada nas artes que possuem uma vanguarda fraca e negligenciável: a ficção e o teatro. A maioria dos romancistas e dramaturgos americanos na realida-de é composta de jornalistas ou sociólogos e psicólogos que fazem isso por amado-rismo. Eles escrevem o equivalente literário da música comercial. E é tão rudimentar, sem inspiração e estagnado o sentido daquilo que poderia ser feito com a forma na ficção e no teatro, que mesmo quando o conteúdo não é simplesmente informação, notícia, ainda é peculiarmente visível, mais facilmente manejável, mais ostensivo. Na medida em que os romances e as peças (nos Estados Unidos), ao contrário da poe-sia, da pintura e da música, não refletem nenhuma preocupação interessante para com as modificações da forma, estas artes permanecem sujeitas ao ataque da inter-pretação.
Mas o vanguardismo programático – que na maior parte tem significado experiências com a forma em detrimento do conteúdo – não é a única defesa contra a praga da interpretação na arte. Pelo menos, espero que não. Pois isso significaria obrigar a arte a estar perpetuamente em fuga. (Também perpetua a própria distinção entre a forma e conteúdo que é, em última análise, uma ilusão.) Teoricamente, é possível evitar os intérpretes de outra maneira, realizando obras de arte cuja aparência seja tão unificada e limpa, cujo impulso seja tão rápido, cujo discurso seja tão direto que a abra possa ser... exatamente o que é. Isso seria possível agora? Acontece no ci-nema, acredito. É por isso que o cinema é a mais viva, a mais excitante, a mais im-portante de todas as formas de arte nesse momento. Talvez a maneira de se perce-ber quão viva é uma determinada forma de arte seja pela liberdade que ela concede de se errar, e não obstante continuar boa. Por exemplo, alguns filmes de Bergman – embora atulhados de mensagens capengas sobre o espírito moderno, convidando dessa maneira à interpretação – ainda triunfam sobre as intenções pretensiosas do seu diretor. Em Winter Light e O Silêncio, a beleza e a sofisticação visual das ima-gens subvertem diante dos nossos olhos a imatura pseudo-intelectualidade da histó-ria e em parte do diálogo. (O exemplo mais notável deste tipo de discrepância é a obra de D. W. Griffith.) Nos filmes bons, há sempre uma comunicação direta que nos isenta de Hollywood, como os de Cukor, Walsh, Hawks e um número incontável de outros diretores, possuem essa qualidade libertadora anti-simbólica, assim como as melhores obras dos novos diretores europeus, como Tirez sur le Pianiste (Atirem no pianista) e Jules et Jim, de Truffaut, A bout de souffle (Acossado) e Vivre sa vie de Godard, L’Aventura (A aventura) de Antonioni, e I Fidanzati (Os noivos) de Olmi.
Se os filmes não foram atropelados pelos interpretadores, isso se deve ao fato de o cinema ser uma forma nova de arte. E também ao feliz acidente de os filmes terem sido considerados apenas filmes por muito tempo; em outras palavras, ao fato de serem compreendidos como parte da cultura de massa, em oposição à cultura erudi-ta, e terem sido deixados em paz pela maioria das pessoas que têm cabeça. Além disso, no cinema há sempre algo mais para captar do que conteúdo, para aqueles que gostam de analisar. Pois o cinema, ao contrário do romance, possui um vocabu-
lário de formas – a tecnologia explícita, complexa e discutível dos movimentos de câmera, da montagem e da composição do quadro que faz parte da feitura de um filme.
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Que tipo de crítica, de comentário sobre arte, é desejável hoje? De fato, não estou dizendo que as obras de arte são inexprimíveis, que não podem ser descritas ou interpretadas.
Podem sê-lo. A questão é como. Como teria de ser uma crítica adequada à obra de arte, e que não usurpasse seu lugar?
É necessária, antes de tudo, uma maior atenção à forma na arte. Como a ênfase excessiva no conteúdo provoca a arrogância da interpretação, descrições mais ex-tensas e mais completas da forma se calariam. O que é necessário é um vocabulário – descritivo e não prescritivo – para as formas.* A melhor crítica, e não é frequente, promove a dissolução das considerações sobre o conteúdo em considerações sobre a forma. Posso citar, sobre o cinema, o teatro e a pintura respectivamente, o ensaio de Erwin Panofsky, Style and medium in the motion pictures, o ensaio de Northrop Frye, A conspectus of dramatic genres e o ensaio de Pierre Francastel, Racine, e seus dois ensaios sobre Robbe-Grillet são exemplos de análise formal aplicada à obra de um único autor. (Os melhores ensaios de Mímesis, de Erich Auerbach, como A cicatriz de Odisseu, são também desse tipo.) Um exemplo de análise formal apli-cada simultaneamente ao gênero e ao autor, encontraremos no ensaio de Walter Benjamin, The story teller: reflections on the works of Nicolai Leskov.
* Uma das dificuldades está em que nossa idéia da forma é espacial (todas as metáforas gregas da forma derivam de noções espaciais). É por isso que dispomos de um vocabulário das formas mais elaborado para as artes espaciais do que para as artes temporais. Entre as artes temporais, uma exceção natural é o teatro, talvez porque o teatro seja uma forma narrativa (ou seja, temporal) que se projeta visual e pictoricamente em um cenário... Nos falta, sem dúvida, ainda, uma poética da no-vela, uma noção clara das formas de narração. Talvez a crítica cinematográfica proporcione esse surgimento e sirva como ponta de lança, porque o cinema é primordialmente uma forma visual, sem deixar de ser uma subdivisão da literatura.
Igualmente válidas seriam as críticas que proporcionaram uma descrição verdadei-ramente certeira, aguda, amorosa do surgimento de uma obra de arte. Isso parece ser mais difícil quando se inclui a análise formal. Parte da crítica cinematográfica de Manny Farber, o ensaio de Dorothy Van Ghent The Dickens worlds: a view from Todgers e o ensaio de Randall Jarrell sobre Walt Whitman se encontram entre os raros exemplos do que quero dizer. São ensaios que revelam a superfície sensorial da arte sem enlameá-la
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Hoje em dia, o valor mais alto e libertador na arte – e na crítica – é a transparência. A transparência supõe a experiência da luminosidade do objeto em si, das coisas tal como são. Nisto reside a grandeza, por exemplo, dos filmes de Bresson e de Ozu, e de A regra do jogo, de Renoir.
Em outros tempos (em Dante, por exemplo) deve ter sido um ato criador e revolucio-nário conceber as obras de arte de maneira que permitissem sua experiência em níveis diferentes. Agora não. Seria reforçar o princípio da redundância, que é a prin-cipal angústia da vida moderna.
Em outros tempos (tempos em que a grande arte não abundava), deve ter sido um ato criador e revolucionário interpretar as obras de arte. Agora não. Decididamente, o que hoje em dia não precisamos é relacionar a Arte ao Pensamento ou (o que é pior) a Arte à Cultura.
A interpretação falseia a experiência da obra de arte, tomando-a como ponto de par-tida. Entretanto, hoje esse falso caminho não se justifica. Imagine a imensa multipli-cação de obras de arte ao nosso alcance, agregada aos gostos e cheiros e visões contraditórias do perímetro urbano que bombardeiam nossos sentidos. A nossa cul-tura é baseada no excesso, na superprodução; o resultado é o permanente declínio da sutileza da nossa experiência sensorial. Todas as condições da vida moderna – sua abundância material, sua colcha de retalhos – se conjugam para embotar nos-sas faculdades sensoriais. E a missão do crítico deve basear-se precisamente na luz do condicionamento de nossos sentidos, de nossas capacidades (mais do que os sentidos de outras épocas).
O que agora importa é recuperar nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, a ouvir, a sentir mais.
Nossa missão não consiste em perceber em uma obra de arte a maior quantidade possível de conteúdo, e menos ainda em espremer da obra de arte um conteúdo maior que o já existente. Nossa missão consiste em reduzir o conteúdo de modo a podermos ver o objeto detalhadamente.
Hoje, a finalidade de todo comentário sobre a arte deveria fazer com que as obras de arte – e, por analogia, nossa experiência pessoal – sejam mais, e não menos, reais. A função da crítica deveria consistir em mostrar como é o que é, inclusive que é o que é, e não em mostrar o que significa.
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No lugar de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte.

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